sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

BARYSHNIKOV e ISADORA DUNCAN


BARYSHNIKOV e ISADORA DUNCAN:
UM SONHO QUE DANÇA



Parece ontem que vi uma platéia paulista silenciar extasiada enquanto um Mikhail Baryshnikov dançava ao som de seu próprio coração. Com microfones presos ao seu peito, o Deus flutuava cada vez mais vigoroso, à medida que o som de seus batimentos acelerava continuamente. Enquanto ouvíamos seu coração disparar, de olhos arregalados a respiração parava, sem acreditar no que víamos, na beleza daquela arte lapidada, na experiência de um bailarino perfeito, nascido para a dança. Lembrei de Isadora Duncan, respondendo a uma pergunta aparentemente inocente sobre seu começo de carreira:

-Quando você começou a dançar, Isadora?

-Acho que comecei a dançar no ventre de minha mãe – respondeu a diva sem nem ao menos pensar. Não havia o que pensar.
Hoje, através da medicina, conseguimos ouvir os sons do coração graças à tecnologia dos equipamentos. Nos exames de pré-natal, ouvimos os batimentos de nossos filhos ainda no útero, tão claramente como ouvimos os nossos próprios corações em estetoscópios. Mas um bebê, no útero, fica em contato permanente com o som do coração da mãe. Os ritmos, as evoluções, a força e a delicadeza. O coração.

Ouvir os ritmos e pulsos do corpo não é algo novo para a humanidade: não é exagero dizer que a dança existe desde os primórdios da humanidade.

No início, talvez, como simples manifestação rítmica motivada por impulsos eróticos, religiosos, fúnebres, bélicos, rituais voltados à fertilidade, colheita, caça ou guerra. A excitação de um corpo recém descoberto, capaz de fazer brotar sons como o bater das palmas das mãos, o bater de pés, o estalar dos dedos, o bater de taquaras e madeiras no chão e nas pedras impulsionam esse corpo para a dança.


Já na Grécia clássica, os ritmos e pulsos do corpo amadureceram e ganharam forma de poesia. O poeta Simonilde assim escreveu: “A dança é uma poesia muda”. A poesia muda ganha novos contornos, ao som de flautas, harpas, cantos e vozes afinadas, trompas e outra infinidade de instrumentos musicais. Ela aparece em mitos, lendas, cerimônias, literatura, e passa a ser matéria obrigatória na formação do cidadão. Por tudo isso, na mitologia grega, uma musa – representante de seres celestiais que inspiravam as artes e as ciências – passou a representar a dança. Assim surgiu Terpsícore, musa da dança (e do canto), chamada carinhosamente “a bailarina”, representada com a lira e o plectro. Mas nem só de poesia e beleza lírica (da lira de Terpsícore) vivia a dança na Grécia. A Ilíada e a Odisséia de Homero nos trazem relatos das danças dos guerreiros durante a famosa guerra de Tróia – batendo os pés no chão, as lanças nos escudos e gritando, para animar as tropas -, além de danças matrimoniais, danças agrícolas ( para fertilização e colheita ) , danças funerárias ( em homenagem aos mortos ) e uma especial dança circular de cortejo e sedução. Além disso, também havia a dança com finalidade dramática, praticada no teatro clássico grego.
Depois desse período, vieram o Império Romano e os povos denominados bárbaros. Com a Idade Média, a Igreja proibiu a dança, e os bailados, como espírito de arte e beleza, adormeceram. Mas, assim como na natureza, tudo que morre, morre para renascer mais forte, para renovar um ciclo, para renascer novo e continuar seu caminho. Chegamos ao Renascimento.

Renascimento. Itália. A dança renasceu numa Itália renascentista, onde o culto aos valores da Antiguidade e as idéias humanistas passaram a expressar um conceito de beleza em que o corpo e espírito devem formar um todo harmonioso. Com isso, e com as cortes fortalecidas veio a surgir aquele que pode ser considerado o primeiro Balé (ou posteriormente chamado Ballet ), um triunfo concebido, musicado e dirigido por Bergonzio di Botta em 1459, para comemorar o casamento do Duque de Milão com Isabella de Aragão. A dança ganhava os palcos e o status definitivo de arte nobre e poderia, a partir dali, crescer e se desenvolver para se tornar o que representa hoje.
Da Itália renascentista, a infância para uma Europa sedenta por novidades e aberta às artes. Ainda foi longo o caminho até a França de Luís XIV, o “Rei Sol”, que em 1661 fundou a Academie Royale de la Danse, a primeira academia de balé do mundo, dando origem definitivamente ao modelo ocidental de balé. Interessante notar que todos os treze mestres, membros da academia serviam na corte do “Rei Sol” e eram mestres em Dança e Música. Não é por acaso que alguns anos depois, em 1669, foi fundada a Academie Royale de Musique, que mantinha uma escola de dança, semente da futura Ópera de Paris. Dança e música semeadas juntas. Ritmo, pulso, movimento e corpo, se reencontrando em prol da arte.

Dessa França absolutista de Luis XIV, o “Rei Sol”, e seu desenvolvimento posterior, surge praticamente toda a terminologia e tradição do balé ocidental: as expressões em francês como glissé, pas battus, entrechats, promenade, pas-de-deux, cabrioles, etc. Mais para frente, ainda na França, no século XVIII surgem obras coreográficas cujo desenrolar se baseia em movimentos dramáticos (estórias), representando as relações entre os personagens e a ação dramática: Ballet d’action. Essa maneira de conceber a dança perdurou muito tempo, se desenvolvendo e ganhando o nome de período Romântico da dança, com sílfides, fadas, pássaros, criaturas aladas voando pelos palcos, roupas brancas (daí o nome “balés brancos”) e a fantasia de um universo mágico em cena. O sonho ganhava vida nos palcos de dança, e a leveza das bailarinas originou a sapatilha de ponta, onde o corpo deveria ser o mais leve, harmonioso e delicado possível. E assim foi, século XIX adentro culminando com La Sylphide e Coppélia e Giselle.

A viagem do coração nos levou adiante até a chamada Escola Russa. Os russos injetaram um novo vigor no balé a partir de meados do século XIX, e nos deram o Bolshoi. Interessante descobrir que foi um francês, Marius Petipa, um dos principais responsáveis pelo florescimento do Balé Russo. Criou Dom Quixote, Barba Azul, As Estações, além de recriar obras como Giselle. Não satisfeito, ainda instituiu uma parceria com um compositor, Tchaikovsky, deixando como legado dessa parceria O Lago dos Cisnes (junto com Lev Ivanov), Quebra-Nozes e A Bela Adormecida. Não era nem o começo. Ainda veríamos os russos nos presentear com Fokine (coreógrafo) e Diaghilev (empresario), a genial música de Igor Stravinsky e de Claude Debussy, e dois fenômenos chamados Vaslav Nijinsky e Anna Pavlova. Dessa época, nasceram obras como Pássaro de Fogo, L’Aprés-Midi d’un Faune, A Sagração da Primavera, entre dezenas de outras obras-primas.


Será que Isadora Duncan imaginava o tamanho da imensidão do “ventre de sua mãe” quando respondeu sem pensar àquela pergunta? Pois foi no ventre da Mãe Natureza, com os corações, pulsos e ritmos dos bailarinos, músicos e artistas que haviam caminhado até o momento de seu nascimento que ela pode aprender a ser Isadora Duncan, “a libertária”. Pés descalços, roupas esvoaçantes, dotada de um helenismo clássico, de um romantismo poético, mas com uma dose exata de modernismo e inquietação, quase uma sacerdotisa em busca de uma dança repleta de beleza e liberdade.

Beleza e liberdade. A partir de 1926 o mundo passou a conhecer outro significado para essas palavras: Martha Graham começou a coreografar. A mãe, matriarca, da dança moderna. Até os seus 90 anos de idade, ainda coreografando, Martha vislumbrou o mundo artístico que ajudou a criar: viu o surgimento de Merce Cunningham, Paul Taylor (ex-solistas de sua companhia), Maurice Béjart, presenciou a sagração do American Ballet de Balanchine e viu Mikhail Baryshnikov se tornar um coração.

Ainda escuto o coração de Mikhail Baryshnikov. E ainda hoje, continuo a buscar o seu significado.

Acredito que é por isso que eu amo a dança. A dança é o coração.
Dança é o coração biológico, aquele que acelera, que pulsa, que faz o sangue fervilhar, o corpo estremecer e sonhar.
Dança é o coração simbólico, aquele que aperta, que sofre, que luta e tem alegrias, que tem medo, dúvidas e vontade, que faz a alma sonhar.

Por isso, como músico e compositor, através da dança, hoje eu sei dizer o que é a música, meu coração: música é o meu sonho dançando.

E você? Em que Dança mora o seu coração?




Nenhum comentário:

Postar um comentário