Estou viciado na série HEROES. Mas isso não é vantagem.
Durante toda minha vida convivi sonhando com meus heróis. Filmes, livros, quadrinhos, onde quer que estivessem eu ia em sua busca. Batman, Jack Bauer, Rock Balboa, X-Men, Robin Hood ou nossos pais...não importa. Sempre me senti melhor quando ouvia suas estórias - as aventuras, as façanhas, os sofrimentos, as transformações.
Heróis são modelos. Não modelos de comportamento, simplesmente. Mas modelos que refletem nossas experiências pela vida: nossas dúvidas, nossos sonhos, nossas aspirações, nossos medos e inseguranças. Os heróis nos ensinam como passar por nossos sofrimentos (e não sofrem pela gente?) e especialmente nos apontam caminhos para superarmos as dificuldades da vida.
Resolvi dividir um pouco disso, dessa minha busca e de meu amor pelos HEROES.
Abaixo, trechos de "O Poder do Mito", em que Bill Moyers entrevista Joseph Campbell - na minha opinião o maior mitologista que a humanidade já produziu. Para quem se atrever nessa jornada...boa leitura.
Que a força esteja com vocês.
A SAGA DO HERÓI
"Além disso, não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido em toda a sua extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói, e lá, onde temíamos encontrar algo abominável, encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao centro da nossa própria existência. E lá, onde pensávamos estar sós, estaremos na companhia do mundo todo."
JOSEPH CAMPBELL
MOYERS: Por que há tantas histórias de heróis na mitologia?
CAMPBELL: Porque é sobre isso que vale a pena escrever. Mesmo nos romances populares, o protagonista é um herói ou uma heroína que descobriu ou realizou alguma coisa além do nível normal de realizações ou de experiência. O herói é alguém que deu a própria vida por algo maior que ele mesmo.
MOYERS: Então, em todas essas culturas, qualquer que seja a vestimenta particular que o herói esteja usando, em que consiste a proeza?
CAMPBELL: Bem, há dois tipos de proeza. Uma é a proeza física, em que o herói pratica um ato de coragem, durante a batalha, ou salva uma vida. O outro tipo é a proeza espiritual, na qual o herói aprende a lidar com o nível superior da vida espiritual humana e retorna com uma mensagem.
A façanha convencional do herói começa com alguém a quem foi usurpada alguma coisa, ou que sente estar faltando algo entre as experiências normais franqueadas ou permitidas aos membros da sociedade. Essa pessoa então parte numa série de aventuras que ultrapassam o usual, quer para recuperar o que tinha sido perdido, quer para descobrir algum elixir doador da vida. Normalmente, perfaz se um círculo, com a partida e o retorno.
Mas a estrutura e algo do sentido espiritual dessa aventura já podem ser detectados na puberdade ou nos rituais de iniciação das primitivas sociedades tribais, por meio dos quais uma criança é compelida a desistir da sua infância e a se tornar um adulto – para morrer, dir se ia, para a sua personalidade e psique infantis e retornar como adulto responsável. E essa é uma transformação psicológica fundamental, pela qual todo indivíduo deve passar. Na infância, vivemos sob a proteção ou a supervisão de alguém, entre os quatorze e os vinte e um anos – e caso você se empenhe na obtenção de um título universitário, isso pode prosseguir talvez até os trinta e cinco. Você não é, em nenhum sentido, auto responsável, um agente livre, mas um dependente submisso, esperando e recebendo punições e recompensas. Evoluir dessa posição de imaturidade psicológica para a coragem da auto responsabilidade e a confiança exige morte e ressurreição. Esse é o motivo básico do périplo universal do herói – ele abandona determinada condição e encontra a fonte da vida, que o conduz a uma condição mais rica e madura.
MOYERS: Mas os heróis não são todos homens?
CAMPBELL: Oh, não. O macho tem normalmente o papel de destaque apenas por causa das condições de vida. Ele está lá fora, no mundo, e a mulher está em casa. Mas entre os astecas, por exemplo, que dispunham de vários céus, para onde as pessoas iam de acordo com a morte que tivessem, o céu dos guerreiros mortos em batalha é o mesmo das mães que morrem em trabalho de parto. Dar à luz é incontestavelmente uma proeza heróica, pois é abrir mão da própria vida em benefício da vida alheia.
MOYERS: Você não acha que perdemos essa verdade, na nossa sociedade, ao considerarmos mais heróico partir para o mundo e fazer dinheiro do que ficar em casa cuidando dos filhos?
CAMPBELL: Fazer dinheiro provoca mais repercussão. Você deve conhecer o adágio: Se um cão morde um homem, isso não é nada; mas se um homem morde um cão, isso dá uma história sensacional. Assim, aquilo que acontece repetidas vezes, por mais heróico que seja, não é novidade. A maternidade deixou de ser notícia, dir se ia.
MOYERS: Qual é o significado das provações, dos testes, das experiências penosas do herói?
CAMPBELL: Se você colocar as coisas em termos de intenções, as provações são concebidas para ver se o pretendente a herói pode realmente ser um herói. Será que ele está à altura da tarefa? Será que é capaz de ultrapassar os perigos? Será que tem a coragem, o conhecimento, a capacidade que o habilitem a servir?
MOYERS: Na nossa cultura de religião fácil, atingida sem esforço, parece que esquecemos que as três grandes religiões ensinam que as provações da jornada heróica são parte significativa da vida, e que não há recompensa sem renúncia, sem pagar o preço. O Alcorão diz: “Você acha que pode ter acesso ao Jardim das Delícias sem passar pelas mesmas provações daqueles que o antecederam?” E Jesus diz, no Evangelho de São Mateus: “Grande é a porta e estreito o caminho que conduz à vida, e poucos os que o encontram”. E os heróis da tradição judaica e nfrentam duros testes antes de chegar à redenção.
CAMPBELL: Ao se dar conta do verdadeiro problema – perder se, doar se a algum objetivo mais elevado, ou a outrem – você percebe que essa, em si, é a provação suprema. Quando deixamos de pensar prioritariamente em nós mesmos e em nossa auto-preservação, passamos por uma transformação de consciência verdadeiramente heróica.
E todos os mitos lidam justamente com a transformação da consciência, de um tipo ou de outro. Você vinha pensando de um certo modo, agora tem de pensar de um modo diferente.
MOYERS: Como é que a consciência se transforma?
CAMPBELL: Ou pelas próprias provações ou por revelações iluminadas. Tudo gira em torno de provações e revelações.
MOYERS: Não existe um momento de redenção em todas essas histórias? A mulher é salva do dragão, a cidade é poupada da destruição, o herói se livra do perigo na hora H.
CAMPBELL: Bem, sim. Não haveria proeza heróica se não houvesse um ato supremo de realização. Eventualmente pode acontecer de um herói fracassar, mas este será normalmente representado como uma espécie de palhaço, alguém com pretensões além do que pode realizar.
CAMPBELL: O objetivo moral é o de salvar um povo, ou uma pessoa, ou defender uma idéia. O herói se sacrifica por algo, aí está a moralidade da coisa. Mas, de outro ponto de vista, é claro, você poderia dizer que a idéia pela qual ele se sacrificou não merecia tal gesto. E um julgamento baseado numa outra posição, mas que não anula o heroísmo intrínseco da proeza praticada.
MOYERS: Os seus estudos de mitologia por acaso o levaram a concluir que um esforço humano singular, um padrão uniforme de aspiração e pensamento humanos, constitui para toda a humanidade algo que temos em comum, quer tenhamos vivido há um milhão de anos, quer venhamos a viver daqui a mil anos?
CAMPBELL: Existe um certo tipo de mito que pode ser chamado de busca visionária, partir em busca de algo relevante, uma visão, que tem a mesma forma em todas as mitologias. E o que tentei mostrar no primeiro livro que escrevi, O herói de mil faces. Todas essas diferentes mitologias apresentam o mesmo esforço essencial. Você deixa o mundo onde está e se encaminha na direção de algo mais profundo, mais distante ou mais alto. Então atinge aquilo que faltava à sua consciência, no mundo anteriormente habitado. Aí surge o problema: permanecer ali, deixando o mundo ruir, ou retornar com a dádiva, tentando manter se fiel a ela, ao mesmo tempo em que reingressa no seu mundo social. Não é uma tarefa das mais fáceis.
MOYERS: Então o herói é movido por alguma coisa, ele não vai em frente apenas por ir, não é simplesmente um aventureiro.
CAMPBELL: Existem heróis das duas espécies, alguns escolhem realizar certa empreitada, outros não. Num tipo de aventura, o herói se prepara responsavelmente e intencionalmente para realizar a proeza. Por exemplo, Atena ordenou a Telêmaco, filho de Ulisses: “Vá procurar o seu pai”. Essa busca do pai é uma aventura heróica superior, para os jovens. E a aventura de procurar o seu próprio horizonte, a sua própria natureza, a sua própria fonte. Você se compromete nisso intencionalmente. Ou existe a lenda sumeriana da deusa do céu, Inanna, que desceu aos mundos subterrâneos e enfrentou a morte para trazer seu amado de volta à vida.
Depois existem aventuras às quais você é lançado – como alistar se no exército, por exemplo. Não era sua intenção, mas de repente você se vê ali. Você enfrentou morte e ressurreição, vestiu um uniforme e se tornou outra criatura.
Uma figura de herói que aparece com freqüência nos mitos célticos é a do príncipe caçador, que foi atraído pela astúcia do cervo a um canto da floresta onde nunca havia estado antes. O animal passa então por uma transformação, tornando se a Rainha da Colina das Fadas, ou algo parecido . É o tipo de aventura em que o herói não tem idéia do que está fazendo, mas de repente se surpreende num mundo transformado.
MOYERS: O aventureiro que se envolve nesse tipo de situação é um herói, no sentido mitológico?
CAMPBELL: Sim, porque ele está sempre pronto para enfrentar a situação. Nessas histórias, a aventura para a qual o herói está pronto é aquela que ele de fato realiza. A aventura é simbolicamente uma manifestação do seu caráter. Até a paisagem e as condições ambientes se harmonizam com sua presteza.
MOYERS: Hoje parece que reverenciamos celebridades, não heróis.
CAMPBELL: Sim, e isso é muito mau. Certa vez foi feita uma pesquisa numa escola secundária do Brooklin, que perguntava: “O que você gostaria de ser?” Dois terços dos estudantes responderam: “Uma celebridade”. Eles não tinham noção da necessidade de dar a si próprios a fim de realizar alguma coisa.
MOYERS: Só queriam ser conhecidos.
CAMPBELL: Só queriam ser conhecidos, ter fama – nome e fama. Isso é muito mau.
MOYERS: Mas uma sociedade precisa de heróis?
CAMPBELL: Sim, penso que sim.
MOYERS: Por quê?
CAMPBELL: Para seguir algum rumo. A nação necessita, de algum modo, de uma intenção, a fim de atuar como um poder uno.
MOYERS: Às vezes me parece que devemos ter pena do herói e não admiração por ele. Muitos deles sacrificaram suas próprias necessidades em benefício dos outros.
CAMPBELL: Todos o fizeram.
MOYERS: Não é verdade que muitos heróis mitológicos morrem para o mundo? Eles sofrem, são crucificados.
CAMPBELL: Muitos doam suas vidas. Mas então o mito afirma que da vida sacrificada nasce uma nova vida. Pode não ser a vida do herói, mas é uma nova vida, um novo caminho de ser, de vir a ser. A história de Jonas na barriga da baleia é um exemplo de tema mítico praticamente universal: o herói é engolido por um peixe e volta, depois, transformado.
MOYERS: Por que o herói precisa fazer isso?
CAMPBELL: É uma descida às trevas. Psicologicamente, a baleia representa o poder de vida contido no inconsciente. Metaforicamente, a água é o inconsciente, e a criatura na água é a vida ou energia do inconsciente, que dominou a personalidade consciente e precisa ser desempossada, superada e controlada.
No primeiro estágio dessa espécie de aventura, o herói abandona o ambiente familiar, sobre o qual tem algum controle, e chega a um limiar, a margem de um lago, ou do mar, digamos, onde um monstro do abismo vem ao seu encontro. Aí há duas possibilidades. Numa história do tipo daquela de Jonas, o herói é engolido e levado ao abismo, para depois ressuscitar; é uma variante do tema da morte e ressurreição.
Outra possibilidade é o herói, ao defrontar se com o poder das trevas, vencê-lo e matá-lo, como Siegfried e São Jorge fizeram quando enfrentaram o dragão. Mas, como Siegfried aprendeu, é preciso provar o sangue do dragão para incorporar alguma coisa do seu poder. Quando matou o dragão e provou do seu sangue, Siegfried ouviu a música da natureza. Ele transcendeu sua humanidade e uniu se novamente aos poderes da natureza, que são os poderes da vida, dos quais somos afastados por nossas mentes.
MOYERS: Por que você intitulou seu livro O herói de mil faces?
CAMPBELL: Porque existe uma certa seqüência de ações heróicas, típica, que pode ser detectada em histórias provenientes de todas as partes do mundo, de vários períodos da história. Na essência, pode se até afirmar que não existe senão um herói mítico, arquetípico, cuja vida se multiplicou em réplicas, em muitas terras, por muitos, muitos povos. Um herói lendário é normalmente o fundador de algo, o fundador de uma nova era, de uma nova religião, uma nova cidade, uma nova modalidade de vida. Para fundar algo novo, ele deve abandonar o velho e partir em busca da idéia semente, a idéia germinal que tenha a potencialidade de fazer aflorar aquele algo novo.
MOYERS: Por que essas histórias são tão importantes para a espécie humana?
CAMPBELL: Depende do tipo de história. Se a história representa o que se pode chamar de uma aventura arquetípica – a história de uma criança se tornando um jovem, o despertar do novo mundo que se abre para a adolescência, sempre ajuda a fornecer um modelo para acompanhar esse desenvolvimento.
MOYERS: E se o herói retorna da provação e o mundo recusa aquilo que ele traz para oferecer?
CAMPBELL: Esta, é claro, é uma experiência comum. Não que o mundo recuse sempre a dádiva, mas ele simplesmente não sabe como recebê-la, como institucionalizá-la...
MOYERS: Como fazer para destruir o dragão em mim? Como é a jornada que cada um de nós tem de empreender, que você chama “a alta aventura da alma”?
CAMPBELL: Minha fórmula geral, para meus estudantes, é: “Persiga a sua bem aventurança”. Descubra onde ela está e não tenha medo de segui Ia.
MOYERS: É o meu trabalho ou a minha vida?
CAMPBELL: Se o trabalho que você faz é o que você escolheu porque encontra prazer nele, então é o trabalho. Mas se você pensa: “Oh, não, eu não devia estar fazendo isso!”, então é o dragão espreitando, dentro de você. “Não, não, eu não podia ser escritor” ou “Não, não, eu não podia de modo algum estar fazendo o que fulano faz.”.
A aventura é a sua recompensa, mas é necessariamente perigosa, incluindo possibilidades tanto negativas quanto positivas, umas e outras fora de controle. Estamos seguindo o nosso próprio caminho, não O caminho do papai ou da mamãe. Com isso estamos, sem proteção, num campo de poderes superiores aos que conhecemos. É preciso ter alguma noção das possibilidades de conflito nesse campo, e, para isso, algumas boas histórias arquetípicas, como esta, podem preparar nos para o que nos aguarda. Se formos imprudentes e, ao mesmo tempo, estivermos inabilitados para o papel que nos destinamos, esse será um casamento demoníaco, um verdadeiro desastre. Mesmo assim, porém, uma voz de resgate talvez seja ouvida, para converter a aventura numa glória para além de qualquer coisa jamais imaginada.
O importante é viver a vida em termos de experiência e, portanto, de conhecimento, do mistério intrínseco da vida e do seu próprio mistério. Isso confere à vida uma nova radiância, uma nova harmonia, um novo esplendor. Pensar em termos mitológicos ajuda o a se colocar em acordo com o que há de inevitável neste vale de lágrimas. Você aprende a reconhecer os valores positivos daqueles que aparentam ser os momentos e aspectos negativos da sua vida. A grande questão é saber se você vai dizer, de coração, um sonoro sim ao seu desafio.
MOYERS: A saga do herói?
CAMPBELL: Isso, a saga do herói, a aventura de estar vivo.
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