quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Pensamentos sobre Pablo Neruda, Budismo e Física.


Outro dia eu estava me recordando de um soneto de Pablo Neruda:

Saberás que não te amo e que te amo
 que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem sua metade de frio.
Amo-te para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.



Amo-te e não te amo como se tivesse
nas minhas mãos a chave da felicidade
e um incerto destino infeliz.


O meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.


Pablo Neruda, Cem sonetos de amor


Como artista, sempre tenho procurado encontrar a poesia que permeia a vida. Claro que não é um caminho simples a trilhar.

Se entregar à poesia significa, acima de tudo, se entregar ao passional, ao emocional, e essa atitude pode se tornar frequentemente (auto)destrutiva.

A verdade é que o mundo não é generoso com quem vive sua poesia. A poesia é fruição, num mundo que hoje é informação. Poesia é sonho e devaneio, num mundo que é realismo, racionalidade, pragmatismo. Poesia é o lúdico num mundo adulto. Poesia é comunhão, e portanto, generosidade, num mundo individualista e egoista. Como pode haver contemplação num mundo onde a velocidade e a rapidez são moedas?


Por isso, a escolha por seguir o caminho da poesia é um sacerdócio, um cruzamento complexo que termina num pêndulo paradoxal: de um lado, posso me tornar um romântico antiquado, piegas, um esteriótipo de sensibilidade aflorada, um sofredor ou apaixonado crônico; de outro posso endurecer, me fechar às mazelas e grandiosidades da vida e me proteger expurgando as emoções para me defender. É a velha questão: se abrirmos demais nossa sensibilidade e nos entregarmos às paixões (poesia!) corremos o risco de nos depararmos com a magnitude da beleza ou a crueldade dolorida do sofrimento. Mas se nos fecharmos, se para nos proteger nos privamos da entrega, nos anestesiamos e nos privamos de uma parte preciosa de nossa humanidade. Vale o risco?


Pensei muito sobre issa questão. Daí lembrei de Neruda, e esse soneto.

E pensei no real significado da poesia em minha vida.

Quando Heisenberg postulou sua "Teoria da Incerteza" (1927), estava desenvolvendo as bases para a mecânica quântica, que ele mesmo ajudaria a sedimentar ao lado de Niels Bohr na constatação de que não se pode medir ao mesmo tempo e com precisão duas quantidades físicas de uma partícula (como posição e velocidade, por exemplo). Isso levou à idéia de que não é possível tratar a realidade como algo previsível, ou equivale dizer que não conseguimos prever o comportamento da matéria entre uma observação e outra. Traduzindo: a realidade é um conjunto imprevisível e probabilistico de escolhas, e a realidade que conhecemos (a que observamos) é tão somente a que escolhemos, mas não é a única que existe. É como dizer que existem várias possibilidades, vários lados de uma mesma vida. Viver um deles só depende de nossa escolha, de nossa capacidade de nos posicionarmos num determinado momento. Posso escolher viver no branco. Posso até mesmo só ver o branco. Porém, não significa que não exista o preto. Ele está lá. Só não optamos por ele, por isso não o vemos.


Impressionante encontrarmos essas idéias como fundamentos enraizados no Budismo, no Xantoísmo e em outras filosofias orientais. Mas me emocionou mesmo encontrar esse pensamento num soneto. Que fala de amor (e - ainda bem - os sonetos não são sempre sobre o amor?). Poesia.
Saberás que não te amo e que te amo
pois que de dois modos é a vida,

Que tipo de amor, que tipo de paixão, que tipo de poesia pode ser tão grande que humildemente assume que só quer existir, ser, não importando a realidade ou modo como exista?


Quão grande pode ser um espírito nega uma única verdade em prol de infinitas possibilidades?

Amo-te para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito


Quão forte deve ser uma personalidade para optar pela ausência, pela perda? Seria isso força, ou generosidade, abstenção, altrísmo, amor? Para mim, a simples idéia de que é possível estar presente, mesmo sem estar presente (estar presente na ausência) já é comovente o suficiente para começar a entender a natureza de uma vida em poesia.

a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem sua metade de frio.

No Japão feudal, quando dois Samurais marcavam um duelo de vida e morte, deveriam fincar no chão suas espadas e comparecer ao local marcado (pelas espadas) na data do duelo. Era uma questão de honra, de vida e morte. Mas, se por algum motivo um deles viesse a morrer antes do embate, e não pudesse comparecer ao duelo, era costume que um mensageiro (padrinho) do morto fosse até o local do duelo, e entregasse ao adversário uma mensagem com o teor "Presença em morte". Essa mensagem significa que o Samurai morreu, mas sua lembrança, ou espírito, compareceu ao compromisso marcado, e que por isso não teve uma conduta indigna, desonrada. Pode, portanto honrar seu adversário e ser sepultado como Samurai.


e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.

Shakespeare também nos deixou sua reflexão sobre a incerteza. Ser ou não ser. Nunca, nem em sonhos eu ousaria sequer questionar um ícone do pensamento humano, mas somente a título de reflexão, no contexto da poesia de Neruda seria "Ser E não ser". Pois não é isso o amar não amar? No fundo optamos sempre pela felicidade, mas nos esquecemos de que a incerteza sobre a infelicidade carrega tanta expectativa, tanta esperança, tantos sonhos quanto a própria felicidade. Quem é capaz de viver tamanha poesia a ponto de se entregar completamente ao risco da paixão, sem medo? Quem assumiria um caminho mais incerto que o amor e a felicidade, amando tanto a ponto de não amar apenas para estar mais próximo, até mesmo na infelicidade?


“Ser ou não ser – eis a questão.
Será mais nobre sofrer na alma
Pedradas e flechadas do destino feroz
Ou pegar em armas contra o mar de angústias –
E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir;
Só isso. E com o sono – dizem – extinguir
Dores do coração e as mil mazelas naturais
A que a carne é sujeita; eis uma consumação
Ardentemente desejável. Morrer; dormir;
Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo!
Os sonhos que hão de vir no sono da morte
Quando tivermos escapado ao tumulto vital
Nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão
Que dá à desventura uma vida tão longa.”

(William Shakespeare, “Hamlet”, ato lll, cena 1.)
Amo-te e não te amo como se tivesse
nas minhas mãos a chave da felicidade
e um incerto destino infeliz.
Nietzsche dizia que o povo grego era marcado por uma grande sensibilidade ao sofrimento e, ao mesmo tempo, tinha um grande talento artístico. Por isso, para tornar a vida mais intensa e alegre, os gregos criaram a arte da aparência e da beleza. Schiller, filósofo e dramaturgo alemão, do século 18, diz que estar emocionado nos dá prazer, mesmo quando essa emoção é dolorosa.
A dor, quando é experimentada como arte, nos deixa comovidos. A gente só é capaz de se comover com a própria dor quando aprende a se distanciar dela. A arte cria este afastamento. Ao contrário do que parece, quando o homem se relaciona com a dor, por meio da arte, ele se fortalece. A tragédia é uma afirmação da vida. Por isso, um artista é aquele que pula o abismo pela platéia. Se o artista vive a dor que tem que ser vivida, ele é o antídoto da dor no peito na platéia. O homem precisa de algum conhecimento para sobreviver. Mas para viver, ele precisa de arte. E de poesia.
Para mim, viver minha vida com poesia é imaginar que sou capaz de amar plenamente, incondicionalmente, generosamente. Tenha dor ou não. Tenha felicidade ou não.
Acredito que Pablo Neruda traduziu nesse soneto um pensamento e um desejo arquetípicos do ser humano. Por isso esse pensamento aparece na ciência com Heisemberg e sua física quântica, na filosofia oriental e no código de honra dos Samurais, ou mesmo na obra universal de um dramaturgo inglês. Pertence a todos nós.

O meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.

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