sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Quando Borat encontra Dom Quixote


BORAT: Dom Quixote moderno?
Sobre Borat, Cervantes, Drummond e Portinari


Não posso estar louco.
Sei o que vi. Compreendo o que vi.

Originalmente, fui ao cinema assistir BORAT
 - O Segundo Melhor Repórter do Glorioso País Cazaquistão Viaja à América. O longa, rodado com US$ 18 milhões, estreou em 837 salas nos Estados Unidos, arrecadando US$ 26,4 milhões em seu 1º fim de semana. Não que isso seja alguma referência. Para mim, o que me chamou realmente a atenção foi saber que a polícia americana foi chamada 91 vezes durante a produção de Borat, devido a cenas rodadas por Sacha Baron Cohen (o Borat, do título). Em Nova York um mandato de prisão chegou a ser enviado ao ator.


Antes de assistir ao filme, porém, ouvi e li muitas críticas a respeito: o filme era realmente polêmico, do tipo "ame-o ou deixe-o". Parecia ser amar ou odiar mesmo. Pessoas inflamadas me falavam sobre a incrível capacidade de fazer rir, ou sobre o inacreditável lado grotesco, por vezes escatológico de Borat. Eu não podia compreender como uma mísera comédia americana podia gerar tanta mídia espontânea, tanta discussão, tanta repercussão. Afinal, diversão serve apenas para divertir.(citando o intelectual Caetano Veloso...) Ou não. Na dúvida, fui ao cinema.

Primeiramente, para que não haja dúvidas sobre minha posição, devo dizer que quase morri de tanto rir. Ri daquelas risadas de perder o fôlego, da barriga doer. Ri do humor que gosto - sarcástico, humor-negro, ácido. Ri das desgraças alheias, do constrangimento, da hipocrisia.
Raramente tenho hoje em dia a oportunidade de exercitar esse riso tão politicamente incorreto. E tão delicioso, pois a desgraça alheia não permite que lembremos de nossas próprias mazelas, ou melhor, permite que vejamos o quanto somos de fato felizes por não passarmos por aqueles constrangimentos naquele momento. Mas isso não vem ao caso aqui.

O que gostaria de deixar registrado é que durante o filme uma idéia me ocorreu. 

Não 
posso estar louco.
Sei o que vi. Compreendo o que vi.

Vi uma jornada de um homem de figura bizarra, que beirava a insanidade pela total incompreensão da realidade (??) a sua volta. Vi essa figura acompanhada por um escudeiro (seu cameraman) baixinho e gordo, um homem nojento, mas que deixava a mostra suas raízes mais humildes, e que tentava desesperadoramente trazer Borat à realidade. Vi esses dois empreenderem uma busca por uma mulher de hábitos bem duvidosos do ponto de vista moral conservador, acreditando piamente que ela fosse uma donzela virgem e pura. Vi essa jornada atravessar terras desconhecidas, usando um carro caindo aos pedaços, com um urso e uma galinha a tiracolo, expondo a hipocrisia, a mentira, e a ética distorcida de um sistema de valores, ridicularizando o modo de ser do homem americano (só eles?) moderno. 
Não posso estar louco.
Sei o que vi.


Vi Dom Quixote de la Mancha e seu escudeiro Sancho Pança, atravessando a Espanha com Rocinante, o cavalo chucro, em busca de uma rameira chamada Dulcinéia.


Dom Quixote
 de La Mancha, é um livro escrito por Miguel de Cervantes y Saayedra (1547-1616). É composto por 126 capítulos de sabedoria, amizade, enternecimento, encantamentos, loucuras e divertimento, divididos em duas partes: a primeira surgida em 1605 e a outra em 1615. É a grande criação de Cervantes.
O personagem principal da obra é um pequeno fidalgo castelhano que perdeu a razão pela leitura assídua dos romances de cavalaria e pretende imitar seus heróis prediletos. Envolve-se em uma série de aventuras, mas suas fantasias são sempre desmentidas pela dura realidade. O efeito é altamente humorístico. A história é apresentada sob a forma de novela realista.
Dom Quixote e Sancho Pança representam valores distintos, embora sejam participantes do mesmo mundo.
É importante compreender a visão irônica que o romancista tem do mundo moderno: o fundo de alegria que está por detrás da visão melancólica e a busca do absoluto.
São mundos completamente diferentes. O fiel escudeiro de Dom Quixote é definido por Cervantes como "homem de bem mas de pouco sal na moleirinha". É o representante do bom senso e é para o mundo real aquilo que Dom Quixote é para o mundo ideal.
No entanto, os contemporâneos da obra não a levaram tão a sério como as gerações posteriores. Passou a ser vista como uma prosa épica de escárnio, em que "o ar sério e grave" da ironia do autor começou a ser bastante apreciado.
O herói grotesco de um dos livros mais cômicos tornou-se no trágico herói da tristeza. Contudo, apesar de alguma distorção, a novela de Cervantes começou então a revelar a sua profundidade. Na história da novela moderna, o papel de Dom Quixote é reconhecido como seminal. Desde o século XVII que se têm realizado peças de teatro, óperas, composições musicais e bailados baseados no Dom Quixote. No século XX, o cinema, a televisão e os cartoons inspiraram-se igualmente nesta obra. Dom Quixote inspirou ainda artistas como Goya e Picasso. Várias interpretações foram dadas à obra. No século XVII, considerou-se que o romance continha em si pouco mais que o tom de bom humor e de diversão, com Dom Quixote e Sancho Pança a encarnarem respectivamente o grotesco e o pícaro.

O GROTESCO e o PÍCARO. ILUSÃO e REALIDADE. O uso do confronto para criticar, para questionar, para incomodar.

Para mim, isso é mais que humor. Beira realmente arte, pelo menos em sua eficiência.Pois como não olhar BORAT à luz de obras como as de Carlos Drummond de Andrade e Cândido Portinari?
A pesquisadora Alice Áurea Penteado Martha, da Universidade Estadual de Maringá, nos propõe uma interessante viagem ao analisar uma obra única, que uso também como base para analogias com BORAT:

Em 1956, Candido Portinari pinta uma série de vinte e uma gravuras, focalizando duas personagens da literatura universal: D.Quixote e Sancho Pança. Em 1972, por ocasião da comemoração de seus 70 anos, Carlos Drummond de Andrade lança um livreto com 21 poemas, alusivos às gravuras do amigo pintor e publicados no ano seguinte com o título geral Quixote e Sancho, de Portinari, em As impurezas do branco (1973).

Os desenhos a lápis sobre cartão foram feitos em 1956, quando Portinari, atendendo a um pedido da Editora José Olympio, começa a preparar uma série de desenhos para uma provável edição brasileira de D. Quixote e que seria por ele ilustrada. Como o projeto da Editora foi abandonado, somente no início dos anos 70, Drummond cria, para a primeira edição do livro Quixote, os poemas que acompanhariam as criações de Portinari. Além dos poemas, os desenhos são acompanhados por trechos da obra de Cervantes, que serviram de inspiração para os traços do pintor. O livro, publicado em 1973, pela Diagraphis, do Rio de Janeiro, foi relançado em 1998, sob os auspícios da Petrobrás.

Com uma estrutura predominantemente narrativa, o poema elabora a síntese da novela de Cervantes, com o apoio das imagens de Portinari, mas o eu poético, diferentemente do que ocorre com a narrativa, cujo narrador detém o domínio de voz e visão, assume em primeira pessoa as emoções do fidalgo Quixote e de Sancho Pança, seu escudeiro. E é, justamente, esse modo renovador de retomar perspectivas que torna a obra singular.


O primeiro poema, Soneto da loucura, acompanha o cartão denominado D. Quixote de cócoras com idéias delirantes e remete-nos à apresentação da personagem de Cervantes, tomada pelo delírio, causado pelo excesso de leituras de novelas de cavalaria. Nos traços do pintor, o desequilíbrio visível nos olhos enormes, arredondados e desmedidamente abertos; no olhar vidrado de Quixote, que busca imagens no horizonte; no gesto característico das mãos, que auxiliam o olhar perscrutador do fidalgo, sedento de aventuras; o cabelo com aspecto de desgrenhado; o sentimento de desamparo e solidão, perceptível na ausência de qualquer outro elemento no cenário. Quixote está só; ninguém o compreende. No poema de Drummond, a escolha de uma forma convencional de poesia, o soneto, para expor o reconhecimento da própria loucura.

I / Soneto da loucura
A minha casa pobre é rica de quimera
e se vou sem destino a trovejar espantos,
meu nome há de romper as mais nevoentas eras
tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas.
Rola em minha cabeça o tropel de batalhas
jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno.
Se da escura cozinha escapa o cheiro de alho,
o que nele recolho é o olor da glória eterna.
Donzelas a salvar, há milhares na Terra
e eu parto e meu rocim, corisco, espada, grito,
torto endireitando, herói de seda e ferro,
E não durmo, abrasado, e janto apenas nuvens,
na férvida obsessão de que enfim a bendita
Idade de Ouro e Sol baixe lá nas alturas.

Se a comparação entre BORAT e DOM QUIXOTE não for inevitável, é pelo menos curiosa.


Já, no cartão de Portinari, D. Quixote a cavalo com lança e espada, Portinari recupera o riso no espírito do leitor, pelo modo inusitado como é construída a figura. Tanto o pintor quanto o poeta elaboram uma imagem quixotesca do fidalgo espanhol. Portinari acentua o humor da imagem, carregando o traço caricato da personagem, visível na excessiva magreza e em sua postura de combate. Drummond, em O esguio propósito, abandona a primeira pessoa e, o eu poético, focalizando a estranha criatura, endossa o caráter de humor presente na imagem de Portinari. Assim, o emblema do cavaleiro andante, contrito e disposto a respeitar e divulgar os valores do guerreiro medieval, é substituído por metáforas.
III / O esguio propósito
Caniço de pesca
fisgando o ar,
gafanhoto montado
em corcel magriz,
espectro de grilo
cingindo loriga,
fio de linha

à brisa torcido,
relâmpago
ingênuo

furor
de solitárias horas indormidas
quando o projeto a noite obscura.
Esporeia
o cavalo,
esporeia
o sem-fim.

Novamente somos levados ao aspecto da figura bizarra, magra, patética, e no inevitável fado de humor que carrega.


O poema Um em quatro, que acompanha o cartão D. Quixote e Sancho Pança saindo para suas aventuras, a seguir, estampa as conquistas da poesia concreta, na medida em apresenta inovações em vários campos: no sintático, a ruptura total com a sintaxe tradicional; no léxico, os neologismos; no fonético, a repetição sonora é a grande chave. Mas o mais significativo é a abolição quase total do verso, no campo topográfico, com o uso dos espaços em branco para intensificar o significado. Na construção do poema, o verbal e o visual concorrem em pé de igualdade na luta pela significação.

As letras que iniciam e finalizam o alfabeto, opostas, portanto (A e Z), são dispostas no texto de modo a representar as personagens Quixote e Sancho em suas “afinidades díspares”; as minúsculas, logo abaixo, na mesma posição, referem-se às montarias de cada um deles, o cavalo e o asno. As letras se juntam, primeiramente, para formar o par homem-animal, A& b; Z&y, e, finalmente, os quatro viventes unem-se pela busca dos mesmos ideais: quadrigeminados, um cavaleiro um cavalo um jumento um escudeiro. Pelo trabalho de organização e disposição das letras, o leitor pode visualizar as linhas que compõem a imagem pintada por Portinari. A partir delas e em diálogo com o texto de Cervantes, Drummond expõe sua visão das quatro criaturas, tão diferentes em seus próprios grupos: o fidalgo (A) e o escudeiro (Z); o cavalo (b) e o asno (y). Entretanto, para o eu poético, as diferenças fundem-se em uma semelhança: o mesmo desejo de aventuras e jornadas, unificado anseio.

V / Um em quatro
A Z
b y
A&b Z&y
Ab yZ
ABYZ
quadrigeminados
quadrimembra jornada
quadripartito anelo
quadrivalente busca
unificado anseio
um cavaleiro um cavalo um jumento um
escudeiro

Para quem se chocou com a cena da luta escatológica entre BORAT e seu cameraman, talvez esse olhar amenize as lembranças...(porque lembrar daquela cena tira o sono de qualquer um!)

Saí do cinema esperando o momento de dividir essa idéia maluca: é claro que BORAT é um filme polêmico, que causa amor ou ódio nas pessoas. É claro que BORAT causa enorme repercussão.
Pois os ARQUÉTIPOS não são assim? E nem comecei a falar de Macunaíma...

As referências sobre Carlos Drummond de Andrade e Candido Portinari foram coletadas de:
Alice Áurea Penteado Martha 
Espéculo. Revista de estudios literarios. Universidad Complutense de Madrid, em http://www.ucm.es/info/especulo/numero23/drummond.html

Um comentário:

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